O GRITO RECORRENTE
(Roberto Marcio)
O período pós-divórcio geralmente envolve grandes mudanças e adaptações na vida e na rotina de quem se separa. Não foi diferente para Marlon. Seus hábitos e estilo de vida mudaram consideravelmente. Acostumado a dividir o lar com a esposa durante alguns anos, de repente virou dono exclusivo do próprio lar. Mas estava curtindo a nova vida e percebia uma liberdade que há muito não tinha. Sua nova residência, um apartamento alugado num prédio antigo situado em uma área pacata, parecia proporcionar a tranquilidade que precisaria. Desde o início simpatizou com o imóvel, que lhe inspirava serenidade e paz. Naquele momento Marlon sabia que precisava de um local bem sossegado, para que começasse o processo de se tornar solteiro de novo, saindo de um casamento que acabou por se revelar problemático. E ainda havia outro fator que requeria um ambiente pacífico: há alguns meses já estava trabalhando no sistema home office, e tendia a assim permanecer. Logo, ele conseguiria melhor produção profissional e resultados positivos, à medida que pudesse se concentrar melhor nos serviços e operações que realizava pelo computador. Por um lado, Marlon andava meio frustrado em decorrência do estressante processo de separação, mas ao mesmo tempo se sentia radiante quando pensava que agora teria tudo para uma dedicação plena ao trabalho. Isso também o ajudaria a superar a árdua fase de recomeço na nova vida. O novo apartamento, indicado por uma pessoa conhecida, atendia às exigências de Marlon. Não podia reclamar. Apesar de velho, estava em perfeito estado de conservação, e recentemente fora reformado pelo proprietário. Era grande para um morador sozinho, mas nunca se sabe o futuro. Marlon, no fundo, esperava não ficar desacompanhado por tanto tempo, embora precisasse inicialmente de um período consigo mesmo. Localizado no décimo andar do edifício, o imóvel dividia o andar com outros três apartamentos. O lugar não parecia ser barulhento, fator primordial na decisão de morar lá. Ele tinha pessoalmente enorme sensibilidade sonora, e facilmente perdia a concentração ao ser incomodado com barulho durante tarefas que exigem concentração. Irritava-se com facilidade com qualquer tipo de ruído desnecessário. Já havia antes tido experiências de estresse por residir ao lado de vizinhos barulhentos. Mas, desta vez os gritos invasivos foram percebidos já no primeiro dia na residência. A mudança no dia anterior transcorrera bem, assim como a primeira noite na nova casa. Em algum momento, enquanto estava trabalhando diante do computador, Marlon escutou um som vindo do apartamento de baixo. Percebia que eram gritos de uma criança pequena, que por alguma razão não soavam normais. Pareciam excessivamente altos e estridentes. Não eram contínuos, incomodavam também por surgirem a partir do nada, em tom alto e penetrante. No meio de um raciocínio importante durante o trabalho, ou na hora exata de digitar um dado imprescindível. Além disso, os gritos causavam incômodo pela sua total irregularidade: aconteciam num dado momento, mas depois não se sabia quando voltariam – às vezes logo depois ou então dali a meia hora. A falta de um padrão contribuía para enervar Marlon ainda mais. Pela natureza dos berros infantis, imaginava-se uma criança que ainda não conseguia falar, em momentos repentinos de alvoroço ou excitação. A proximidade dos sons era impressionante. Não havia nenhuma sombra de dúvida de que vinham de baixo. Uma novidade, certo dia, incomodou ainda mais: ouviam-se batidos insistentes e repetitivos vindos do chão da sala, como se alguém estivesse batendo com força no teto do apartamento de baixo. Após dias de tentativas de meditação para relaxar e não se preocupar com sons alheios, Marlon cada vez mais constatava que os gritos eram de fato constantes. Todos os dias, para sua infelicidade. Não deixavam de acontecer... Numa época em que precisava trabalhar na maior parte do tempo, saía pouco e quase não via outros moradores do prédio! Pelo que tinham informado, quase não havia famílias com crianças por ali. Para uma pessoa como ele, extremamente sensível a sons, tornava-se um inferno dividir atenção durante o trabalho com as interferências invasivas daqueles gritos vindos de fora. Discreto e reservado como era, Marlon não tinha coragem de dirigir-se ao andar inferior e solicitar silêncio, faria isso caso fosse necessário posteriormente. Mas sabia que não tinha outra opção senão prosseguir no seu home office, e foi então que decidiu tentar alternativas para disfarçar ou amenizar o incômodo. A primeira tentativa foram os protetores auriculares, dispositivos usados para abafar ruídos, que não serviram para abafar os indesejados gritos. Os ouvidos de Marlon ainda captavam o som, que apenas ficava um pouco abafado. Resolveu então comprar tapetes mais grossos, pois já tinha ouvido falar que ajudam no isolamento acústico. Mas foi também outro recurso sem sucesso, pois de nada atenuaram a invasão sonora. A próxima ação, que era verificar se outros vizinhos também se sentiam incomodados com a situação, não surtiu efeito, já que as pessoas diziam não perceber o problema. Só restou a última instância, a qual Marlon não queria... Faria uma reclamação oficial com a síndica. Como ele ainda não a conhecia e não tinha os canais de acesso a ela, resolveu ir à portaria falar com o porteiro. Ele conversou com o porteiro e explicou a situação, a fim de justificar a urgência em entrar em contato com a síndica. Estranhamente, foi informado de que não havia nenhuma criança pequena nos andares próximos dele. E o porteiro ainda forneceu mais informações:
- Doutor, no apartamento embaixo do seu não mora ninguém. Está vazio há mais de um ano. Depois do que aconteceu lá, os donos foram embora e não alugaram o imóvel. Acho que...
- Como assim? Aconteceu o quê lá?
- O filhinho do casal... o pobrezinho caiu de lá, morreu na hora...A polícia ainda investiga, mas dizem que foi atirado pela janela!
(do livro ”Janelas Visitadas” de Roberto Marcio – ed. Sete Autores)
(Roberto Márcio)
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