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  • Foto do escritorLetícia Barros

O sabor do nome dela

Eu conto um conto

A minha mente divagou por ruelas escurecidas em meio à multidão sortida, elaborada, vestida, fantasiada com cores mil, plumas e paetês. Entre monstros da floresta, ladrões, palhaços, robôs, borboletas e capetas, super-heróis bailarinas e pierrôs, geminados às risadas mais e mais altas, no girar dos quadris e na fanfarra dos tamborins, a poeira dançava altiva e despercebida, na lucidez cega da alegria do Carnaval. Foi mágico! Em 1981, vivi a história mais empolgante e vibrante que um rapazola de 21 anos poderia sonhar.


Já era terça-feira, último dia do ano para se despir de padrões, bons dias e boas noites. Reinava o auê, o sentar no chão se der vontade, pendurar-se nos muros para ver a banda passar, não fechar os olhos para descansar. Era Carnaval, não tinha almoço e janta, tinha cerveja gelada e churrasco que a gente apreciava em casa de quem nem se conhecia. Comecei cedo, alias, por acaso não dormi. Era folia e eu fiz tudo que pude para ser feliz. Em Nova Lima, não era difícil brincar até cair. A folia aqui é “sagrada”, levada a sério e aproveitada ao cubo. Os bailes, blocos e desfiles das escolas de samba movimentam a cidade que para mim, só deveria ter mais.


Aproveitei tudo que pude, corri pelas ruas feito um louco, mas de alegria, com a família, amigos, primos e tias. Fiz declarações de amor, jurei honrar minha mãe e meu pai, beijei o rosto deles como se não houvesse amanhã. Banho... não sei se tive a oportunidade, mas, da água que jogavam das mangueiras, das casas vizinhas à folia, me esbaldei. Bebi toda água do mundo ou não que botavam em boca minha. Até que... o sol começou a partir. Era o prenúncio do fim. Bateu uma saudade, daquelas mais rasgadas. A energia dava sinais de cair e uma lágrima, uma lágrima, deixei... Na Rua Santa Cruz, por onde deslizavam fantasias apossadas de pessoas, pois, ali, não podiam ser elas.


Parei no mesmo lugar em que a lágrima caiu. Subi no muro para respirar. Sorte a minha, porque já ia começar o desfile das escolas de samba de Nova Lima. Ainda irritado com o fim do Carnaval, cogitei descer para sambar, mas, o doce das pernas não permitiu. Ouvi de longe o som da bateria. Meu Deus!! Meu coração tremeu. Comecei a bater os pés e as mãos junto com a passista. Era só o gesto que eu conseguia fazer, mas, foi de todo coração. Assim, minha irritabilidade foi tomando a forma do cavaco, do surdo, do apito, da marcha dos foliões. Me rendi ao samba das mocinhas, adornadas com plumas e paetês. Até que, a mais dourada, sob o luar do Carnaval, pairou diante dos meus olhos.


As fantasias engraçadas, os maiôs asa delta e os trajes minúsculos das mulheres mais lindas se dissiparam da minha mente. Só ela apareceu. Quase uma aparição, um anjo! Eu só pude ver aqueles olhos brilhantes, mel, sob a máscara do Carnaval. Dançava como se os pés fossem feitos de nuvem, embalando meus sonhos mais raros. Nas mãos, o charme dos diamantes. sobre os cabelos um arco dourado e branco, cintilante. Nas asas... Ah!! Aquelas asas! Tinham o poder de me fazer voar.


Não resisti aquele encanto. O Carnaval parou, meu coração bateu forte e num vento que só bate uma vez, desci do muro. Meus olhos só queriam os dela. A força de um javali me invadiu e eu, como se fosse príncipe, me aproximei. Pensei... ela é digna de eterna conquista. Girei os pés como um mestre-sala e sambei. Meu Deus como eu sambei!!! Cada retumbar dos tambores percorreu meu corpo inteiro. Pés e braços ganharam vida própria. Porém, meu olhar era dela, tão somente dela.


O suor me brotava como um rio... foi quando pensei que minha vida expiraria, minha musa parou, e, estática passou a olhar para mim. Aí, eu sambei feito um rei. Então, num gesto de profunda humildade, verti o tronco, feito um cavalheiro diante de sua rainha. Respirei os segundos com fé e agonia. Ao levantar novamente os olhos, os joelhos não suportaram, eu caí. Meu anjo havia desaparecido. O javali escondido no príncipe ressurgiu em busca da amada. Corri entre a multidão, mas, nada encontrei. Em silêncio a busquei, mas, nem de relance a vi. Vez ou outra, uma fantasia enganava meus olhos, mas, não era ela.


Foi quando a minha mente divagou por ruelas escurecidas. No entanto, mesmo ardendo de amor, o que poderia ser mudado? Eu nem imaginava o sabor do nome dela. Poderia ser Rosa, Camélia, Violeta ou Jasmin. Fosse diferente, perguntaria de porta em porta até encontrar minha preferida, aquela margarida, que numa noite de sorte, roubou meu jardim. Eu a encontraria, a tomaria nos braços e diria: você... anjo, na verdade... é meu girassol.


Bom senhores e senhoras... ao invés disso, a caminhada durou a noite e queimou quase toda cachaça, só me restando a exaustão e a sede. Foi quando, em fim, desolado, cheguei bem no rumo de casa, e, de longe, aquele portão velho de madeira me reservou tremenda surpresa. Não podia ser! Será que o Carnaval me havia reservado o Céu. À luz fresca da manhã, quando o sol é mais dourado, meu anjo se mostrava ainda mais linda, com suas asas iluminadas pela natureza. Fiz o maior esforço para me aproximar, antes que ela pudesse ir embora, e, meio sem ar, andando entre tropeços, ouvi o inacreditável: “Luiz!!!”.


De imediato, pensei: meu anjo conhece meu nome!!! Ela repetiu: Luiz... vem aqui!!! Nesse momento, percebi. Aquela moça não só sabia meu nome, como me conhecia muito bem, a vida toda. A rispidez daquela voz aguda lembrou-me, no ligeiro segundo. Continuei a caminhar, dessa vez, mais tenso e ereto até o portão da minha vizinha de frente, a Janaína. Janaína? Eu perguntei confuso. Sem pestanejar, ela disparou aquela vozinha.


“Você acabou com meu Carnaval, seu pateta, bêbado, bocó de meia-tigela. Sabe o quanto eu sonhei com aquele desfile???? Sabe o quanto me custou essa fantasia. Um ano de trabalhos para minha mãe e minha tia!!!! Você tinha que estragar tudo...”, disse entre choro, gritos, gruídos e sapateados, num espetáculo continuado. “Tive que fugir de você a noite toda, depois daquele samba deprimente que você fez na minha frente!! Quando vi que era para mim, saí correndo, mas, você veio atrás que nem um Zé da pinga. Não tinha onde ficar com toda essa perseguição. Meu samba caiu, meu Carnaval foi arruinado por você, seu, seu, seu... Arc!!”, finalizou o grito de gralha, correndo portão à dentro.


Não pude acreditar naquela cena. Desmoronei na calçada de casa, embevecido de gargalhadas ininterruptas, até pegar no sono, ali mesmo, de frente para vergonha que passei.


Por Letícia Barros


Eu conto um conto



O Jornal Rede Nova Lima convida escritores da cidade a publicarem seus contos em nossas próximas edições. É só enviar o trabalho com as informações: seu nome, título e texto com, no máximo, 5 mil caracteres, sem espaço, em documento de Word, espaçamento 1,5, e justificado. O e-mail deve ter o seguinte título na mensagem: "Eu conto um conto". Nossa equipe avaliará os trabalhos e publicará um conto, a cada semana, em nosso jornal virtual. A cada rodada de dez contos publicados, o (a) escritor (a) do conto mais curtido e comentado em nossos perfis do Instagram e Facebook, receberá uma homenagem virtual aqui no Rede. E-mail: comunicacao@redenovalima.com

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